Chuvas em Pernambuco: uma catástrofe anunciada; Inépcia de governantes e corrupção são alguns dos fatores que fomentam a tragédia no Nordeste



Revista Oeste - Por Vinícius Sales • Ao cair da noite do dia 14 de janeiro, o chão do Hospital da Restauração (HR), no Recife, foi tomado pela água que escorria do teto. Deitada ao lado do forro aberto, a paciente via a chuva entrar no setor de traumatologia e se espalhar pelo edifício. No início de maio, as infiltrações causadas pelas águas romperam o cano da sala de emergência do hospital, levando pacientes e enfermeiros ao desespero. As chuvas iniciadas neste mês não afetaram somente os residentes no HR, mas várias regiões do Estado de Pernambuco.

O que já havia sido anunciado no início do mês terminou no maior desastre no Estado dos últimos 47 anos. Até o fechamento desta matéria, 128 pessoas haviam morrido em decorrência dos deslizamentos e enchentes provocadas pelas chuvas. O número de desabrigados já ultrapassa 9,3 mil pessoas.

Neste ano, o Recife e regiões metropolitanas foram atingidas pela “Onda Leste”, um fenômeno caracterizado por ventos que se deslocam da costa da África até o litoral leste do Brasil e criam nuvens carregadas. O Estado chegou a registrar um volume de 700 mm de chuva nesse mês, sendo 500 mm só no último final de semana.



O bairro de Jardim Monte Verde, que faz divisa do Recife com Jaboatão dos Guararapes, foi o local mais afetado pela catástrofe. De acordo com informações do Corpo de Bombeiros de Pernambuco, mais de 20 pessoas morreram em razão dos deslizamentos de barreiras que ficam no entorno da região. Como o governo estadual não divulga o número de mortes por local, a quantidade de óbitos na região pode ser maior.

Cerca de 31 cidades declararam estado de emergência. São elas: Cabo de Santo Agostinho; Camaragibe; Goiana; Jaboatão dos Guararapes; Macaparana; Moreno; Nazaré da Mata; Olinda; Paudalho; Paulista; Recife; São José da Coroa Grande; São Vicente Ferrer; Timbaúba; Abreu e Lima; Araçoiaba; Igarassu; Aliança; Glória do Goitá; Vicência; Bom Jardim; Limoeiro; Passira; São Lourenço da Mata; Pombos; Palmares; Sirinhaém; Lagoa do Carro; Tracunhaém; Chã Grande e Escada.

Os eventos que se sucederam desde a quarta-feira passada, 25, poderiam ser considerados atípicos para a região Nordeste. No entanto, o descaso com a infraestrutura em Pernambuco já data de anos anteriores. É assunto rotineiro entre os pernambucanos comentar quais vias alagam durante o inverno e quais barreiras podem deslizar. Em Recife, cidade com mais de 485 anos de história, morar em “áreas de risco” é a justificativa dos governantes para as tragédias ambientais.


Tragédia em 2021

Em maio de 2021, a cidade viveu um caos semelhante ao desse ano. O deslizamento de uma barreira localizada no bairro Brejo da Guabiraba, Zona Norte do Recife, deixou três pessoas feridas e atingiu seis casas. No mesmo dia, o Rio Fragoso, em Olinda, transbordou, forçando os moradores do local a deixaram suas residências. Muitos perderam documentos e eletrodomésticos.

Já no bairro de Cavaleiros, em Jaboatão dos Guararapes, uma família inteira chegou a ser soterrada por um deslizamento de barreira. De acordo com a equipe de resgate, pai e filha foram encontrados mortos abraçados no sofá. Também foram registrados deslizamentos de terra em Camaragibe, Paulista e Ipojuca.

A falta de recursos para obras não é uma realidade. De acordo com decreto publicado no Diário Oficial da prefeitura do Recife (Nº 34.543), no dia 6 de maio, cerca de R$ 5 milhões foram retirados da ação de Requalificação dos Cursos de Água para a área de comunicação. A prática de realocar recursos não é nova.

2020

Para além da região metropolitana, municípios do interior do Estado de Pernambuco também sofrem com as cheias causadas pelas chuvas no inverno. Em junho de 2020, a cidade de Água Preta teve mais de 100 residências afetadas pelas chuvas. Em Barra de Guabiraba, 1,2 mil pessoas foram desalojadas. Em Rio Formoso, 10 deslizamentos foram contabilizados, deixando 22 pessoas desalojadas. Todos os desastres ocorreram no dia 15 do referido mês.

Em junho, na cidade de Nazaré da Mata, o rio Tracunhaém, por conta das chuvas, subiu acima da cota de alerta. Cerca de 12 pessoas ficaram desabrigadas e 88 desalojadas.

2019

Em agosto de 2019, oito pessoas morreram depois de deslizamentos de terra na Região Metrolitana do Recife. Duas vítimas foram contabilizadas na barragem que vida no bairro de Águas Compridas, em Olinda. No bairro de Passarinho, muitas árvores de grande porte caíram por causa das chuvas. Uma delas atingiu a residência de um casal, que morreu. Outro deslizamento no bairro de Caixa d’Água, em Olinda, vitimou dois adultos e duas crianças.

Em março do mesmo ano, depois irmão morreram em um deslizamento de barreira na Mirueira, no município de Paulista. As vítimas foram um adolescente de 12 anos e a irmã dele, de 5. Ambos estavam dormindo.

De acordo com a Defesa Civil, a chuva ocorrida no dia causou o desprendimento de uma árvore próxima à casa. O tronco derrubou um poste, que caiu na casa das vítimas. Com a queda, parte da barreira também deslizou e entrou na residência.

Corrupção no Orçamento

O desvio de recursos públicos destinados à reconstrução de municípios afetados pelas chuvas de 2010 e de 2017 também reforça o descompromisso de agente públicos no drama sofrido pela população pernambucana.

Em 2017, a Operação Torrentes, da Polícia Federal, prendeu quatro coronéis da Polícia Militar de Pernambuco — todos ocupavam cargo de confiança do governador Paulo Câmara (PSB). Eles foram condenados pelo desvio de parte dos R$ 450 milhões repassados pelo governo federal a Pernambuco.

O atual secretário de Defesa Civil do Recife, o coronel bombeiro Cassio Sinomar Queiroz de Santana, também foi alvo da operação.

De acordo com as investigações, houve superfaturamento de até 30% nos contratos para a aquisição de bens da Operação Reconstrução, que tinha como objetivo assistência às vítimas das enchentes que devastaram as cidades, em junho de 2010.

Um relatório elaborado pela Controladoria-Geral da União (CGU) com relação aos gastos efetuados pela Casa Militar descobriu que, em conluio com as empresas, os agentes públicos fraudaram as licitações requerendo serviços que não foram prestados à população.

Ineficiência nos gastos

Como se não bastasse a corrupção, a ineficiência dos gastos pela gestão do PSB, no Recife, também contribuiu para o cenário caótico da cidade. Desde 2013, a Prefeitura executou apenas 17% do orçamento previsto para obras de urbanização em áreas de risco, como locais de encostas e alagados.

Dentre os R$ 980 milhões disponibilizados para essas ações na Lei Orçamentária Anual (LOA) do município, enviada à Câmara de Vereadores a cada ano, apenas R$ 164,6 milhões foram aplicados na área. Os dados podem ser conferidos no Portal da Transparência do município.

Segundo um levantamento feito pelo Jornal do Commercio, dos partidos que passaram pelo governo municipal, o PSB foi o que menos investiu em prevenção de tragédias nos morros do Recife. Tanto o ex-prefeito Geraldo Júlio (PSB) quanto João Campos investiram 1,48% e 1,09% — respectivamente — do orçamento em obras para a gestão de risco de alagamentos. Os porcentuais são distantes em comparação aos 2,88% investidos pelo ex-prefeito João Paulo (PT).

Gastos com publicidade

Em meio a maior enchente da história do Estado, o governador Paulo Câmara solicitou ao Tribunal de Contas do Estado de Pernambuco (TCE) a liberação de R$ 24 milhões em publicidade a serem realizados pela Empresa Pernambucana de Turismo.

O conselheiro do TCE Carlos Porto já tinha proferido uma decisão suspendendo a licitação, mas a assessoria do governador foi ao plenário do tribunal pedir para liberar os gastos em publicidade.

Porto considerou o pedido “inadequado” para o momento e votou por negar a requisição do governo. Entretanto, ele foi voto vencido pelo plenário da Corte e sua decisão anterior foi revogada.

Oposição cobra governo

Parlamentares de Pernambuco cobraram do Executivo municipal e estadual maior investimento em infraestrutura. A deputada estadual Priscila Krause (Cidadania) alegou que a prefeitura do Recife não está investindo o orçamento total destinado ao combate às chuvas.

“Enquanto a própria prefeitura reservou em seus orçamentos um bilhão de reais em dez anos para obras nos morros, os gastos efetivamente realizados não chegaram a 20%. Enquanto isso, outras ações menos estruturadoras, como o recapeamento asfáltico, por exemplo, recebeu investimentos nesse mesmo período de R$ 475 milhões, enquanto havia dotação de R$ 370 milhões, ou seja, superou em R$100 milhões o previsto”, disse a parlamentar.

Já a deputada Clarissa Tércio (PP) criticou a atitude do governador de Paulo Câmara de gastar 24 milhões com comunicação institucional. “Essa atitude se soma com a negligência do governo PSB em adotar ações preventivas para as chuvas que mataram centenas de pessoas e deixaram milhares desabrigados”, afirmou a deputada. “Enquanto todos se unem para buscar ajudar as vítimas de uma tragédia absolutamente anunciada, o governo busca investir em propaganda, como se isso fosse trazer algum ganho para a população. É um verdadeiro deboche com a população”.

O líder da oposição na Câmara Municipal do Recife (CMR), Renato Antunes (PSC) afirmou que a prefeitura da cidade havia sido alertada das fortes chuvas dias antes do desastre acontecer.

“Recife está um caos hoje. Não atribuímos isso somente à natureza, pela chuva. O que vemos é a falta de um governo, de um plano operativo para combate esse período de cheias e fortes chuvas. Vemos e inércia do poder público. Foi triste ver, por exemplo, quando o órgão federal emitiu o alerta de chuva e o prefeito do Recife só foi emitir alerta dois dias depois. O que se viu no sábado foi um caos instaurado. Foi a cidade recolhendo enterrando seus mortos.

Antunes também criticou o gastos das gestões do PSB com publicidade.

“É lamentável ver que a Prefeitura do Recife gasta mais com comunicação institucional do que com a prevenção aos danos causados pela chuva. Isso já é uma série histórica do PSB, que gasta muito para fazer sua propaganda e tira ano a ano o dinheiro para o combate às enchentes”, disse.

É preciso controle urbano

Para entender as cheias que abateram o Recife, é necessário entender o funcionamento hídrico da região. À Oeste, o professor Ronald Vasconcelos, da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE) explica o funcionamento das bacias da cidade.

“Na planície, o rio é chamado de Pequena Calha, é o local que sempre corre água. Depois há a Média Calha. É aquela que, quando tem uma precipitação (de chuva) maior, é ocupada e o rio se espraia. E tem o que chamamos de Grande Calha. É a calha que o rio se espalha, como ocorreu nessa semana, em que o nível do rio vai para além do esperado. No Recife, nós temos três principais bacias: Rio Capiberibe, Rio Beberibe e Rio Tejipió. Em 1975, a gente teve um evento como esse, da semana passada, que essas três calhas ficaram uma coisa só, se juntaram. Ou seja, a planície do Recife é a grande calha desses três rios”.

Ronald argumenta que assoreamento dos rios, ou seja, o acúmulo de materiais orgânicos e inorgânicos contribui para as cheias na cidade. Como solução, o Estado deve realizar as dragagens das bacias hídricas.

“A dragagem constitui em afundar o rio, como ele era antigamente, e retirar sedimentos de dentro, que são lixo, terra, matéria orgânica do esgoto e outras coisas”, explica o professor.

No caso dos morros, Ronald explica que plantio nas encostas e nos cumes firma o solo e reduz a possibilidade de deslizamentos.

“Só para você ter uma ideia, a Zona da Mata de Pernambuco tem um solo parecido com o solo da Região Metropolitana. Você tem 400 anos de plantio de cana de açúcar. O que acontece? Por que essa região não se acabou com as chuvas? Porque o que a gente planta é uma graminha que dá sustentação a água”.

O arquiteto também aponta que o poder público precisa fazer o controle urbano das áreas de risco.

“É preciso fazer também uma coisa que geralmente os políticos se afastam, que é o controle urbano. É preciso dizer ao morador: ‘aí não é para ficar e você não vai ficar’. Tem o problema social? Tem. Mas o problema social maior é o que está aí agora. Você vê a pessoa perder a casa, a geladeira, a televisão, a cama, os armários, o trabalho de uma vida”, finaliza.

Governo do Estado e Prefeitura

Nesta sexta-feira, 3, o governo de Pernambuco anunciou uma pensão vitalícia de um salário mínimo aos dependentes dos mortos na tragédia. A gestão estadual também prometeu um auxílio único de R$ 1,5 mil aos desabrigados e desalojados.

Em coletiva de imprensa no Palácio de Campo das Princesas, o governador também decretou luto oficial de três dias em Pernambuco pelas vítimas.

No total, serão destinados R$ 123 milhões do Tesouro estadual para essas iniciativas, que beneficiarão 82 mil famílias inseridas no Cadastro Social de Vulnerabilidade identificadas nessas condições.

“Hoje encerramos as buscas pelas pessoas desaparecidas. Quero prestar minha solidariedade aos familiares das 128 vítimas e informar que estamos decretando luto oficial de três dias, em memória dessas pessoas. Vamos repassar cerca de R$ 120 milhões aos municípios em situação de emergência, para que seja pago o Auxílio Pernambuco às famílias prejudicadas”, afirmou Paulo Câmara

O prefeito do Recife, João Campos, anunciou que os moradores da cidade, que foram afetados pelas chuvas, receberão R$1.000. O chefe do Executivo municipal também disse que o auxílio-moradia do Recife aumentará em 50%, passando de R$200 para R$300.

“A gente tem um plano permanente na cidade de cuidado às áreas de risco. Nós temos, por exemplo, nesse ano, R$168 milhões de investimentos de preparação para o período do inverno e dentro desse valor tem mais de R$40 milhões destinados a proteção de encostas. Eu formalizei uma solicitação ao Ministério de Desenvolvimento Regional de que R$74 milhões que existem num convênio entre prefeitura e Governo do Estado firmado ainda em 2012 possa ser liberado e de maneira imediata para a gente realizar essas obras, além de R$300 milhões para a construção de novas proteções de encostas”, afirmou o prefeito.